13 de abril de 2013

Aconteceu no Agreste, há 24 anos, a Globo televisionou e a gente reprisa


- Êta! Que surpresa!

- Eu preciso falar muito contigo.

- Oxente, fale, ora...

- É em particular.

- Pois fale! Ih... pela cara, já vi que o assunto é sério.

- É sobre essa... esse seu procurador. Como é que tu vai fazer uma coisa dessa com a cidade. Atenta dessa maneira contra a lei de Deus!

- Com que direito que tu enche a boca de ar e fala nas leis de Deus? Que lei é essa? Onde é que tá escrito, me diga? Por acaso Deus lhe passou procuração pra agir em nome dele? 

- Tieta, tu não pode achar que um homem que se veste de mulher é uma coisa normal!

- Oxente, é a roupa que importa? É a aparência? Aos olhos de Deus é a aparência que importa ou é o caráter?

- Não foi isso que eu quis dizer... Não é só a roupa, é tudo.

- Tudo o que, cabrito, me diga? Fale de uma vez, a censura já acabou!

- Tieta, um homem é um homem, uma mulher é uma mulher. Deus criou o sexo com o papel definido, uma função. 

- Oxente... e quem não se enquadra nesse papel definido e nessa função, tu acha que a gente deve fazer o que? Afogar no mar? 

- Não. A gente deve dar todo tipo de ajuda pra essa pessoa se corrigirem.

- E o que é isso "se corrige"?

- Ora, pra que essas pessoas se  tornem normais como todas as outras!

- Normal...? Nós, sinceramente, me diga... de perto alguém é normal? 

- Tieta, a gente é normal!

- Ah! Aos teus olhos! Teus olhos! Porque de fora, essa gente toda nos condenaria se soubesse do nosso amor... o nosso amor não é um amor normal. 

- Tu não pode comparar a gente com Linete.

- Oxente, por que não?

- Tu acha que alguém seja como ela, tão diferente dos padrões?

- O que é que tu chama de padrão de comportamento? Cardo, o que é tu quer? Que todo mundo seja igual? Que se comporte do mesmo jeito? Que siga as mesmas regras? O ser humano não foi feito por decreto. Que é isso...? E eu lá sou máquina por acaso? A gente sai da fábrica, tudo bonitinho, enfileiradinho, assim, um atrás do outro, tudo exatamente igual, é isso?

- ... Não, eu não acho que todo mundo é igual.

- Mas acha que todo mundo tem que se comportar do mesmo jeito. Não admite que uma pessoa não viva dentro do jeito que tu considera normal.

- Mas ela é muito diferente...

- Mas é diferente por que, Cardo? Ah, a gente não pode julgar as pessoas desse jeito. Quem é tu pra julgar? Quem sou eu pra julgar os outros?

- Tieta, a gente vive numa sociedade.

- Numa sociedade que quer que todo mundo se comporte do mesmo jeito, que não aceita que uma pessoa siga seu impulso, que faça o que a natureza manda.

- Mas não pode ser assim. Imagina como seria se as pessoa saissem por aí, seguindo seus impulsos.

- Cardo, quando tu largou o seminário, tudo não táva seguindo um impulso? Se tu tivesse continuado naquela vida, táva até hoje infeliz. Então, cada um tem seu próprio impulso, tem que respeitar a liberdade dos outros. Se não, quem vai respeitar a tua?

- Tu tá comparando de novo.

- Tô, tô. Porque eu sou tua tia, tu é meu sobrinho, a gente se ama escondido porque os outros não aceitam o nosso tipo de amor. Se essa cidade inteira soubesse, ia nos condenar do mesmo jeito que condena Linete. E tu acha que o nosso caso ia dar certo?

- Claro que não...

- Então, Cardo... por que que tu quer que condenem Linete? Tu acha certo condenar Linete? Abra um pouco o seu coração e aceite as pessoas como elas são. Aí elas vão te aceitar como tu é.  E não venha com esse papo de que é normal, porque normal ninguém é. No fundo, no fundo, todo mundo tem um segredozinho escondido, um pecado, uma mania, uma tara. Sei lá, hahaha! Quem não tem vontade de mandar tudo se explodir e seguir o seu impulso, mas não faz porque tem medo do que o povo vai dizer? Aí vive reprimido, vive infeliz, como tu vivia antes de aceitar o nosso amor, não é? 

- ... Mas Tieta, você é uma mulher, eu sou um homem. Tá no Evangelho: crescei e multiplicai-vos. 

- Oxente... é só pra isso que sexo serve? Pra multiplicar? Então a gente vai pra cama só pra reproduzir, Cardo? É isso? Não é pra ter prazer? Ah... Cada um que encontre a sua maneira de ter prazer, de amar, de viver! Só porque não é igual a tua maneira, tu vai achar que tá errada? Se tu não entende, tu julga. Vai julgar, vai condenar? Ah, Cardo... abra seu coração, sua cabeça.

- Eu preciso pensar. É novo demais pra mim. 

- Pense, pense bastante. E não tenha medo de voltar atrás, de se arrepender. Não é vergonha nenhuma, muito pelo contrário, é sinal de coragem. 

- Eu vou pensar, tô muito confuso. Boa noite.

- Vá lá.





Aconteceu em 1989, em outra realidade 'global', 
quando ainda havia mídia inteligente (?)

Nenhum comentário:

Postar um comentário