2 de setembro de 2015

Sofia e a Caixa

Ao fim das discussões daquela noite, sob a rede de estrelas, Sofia me perguntou o porquê de o mundo ir como vai, como se repetíssemos os erros dos que vieram antes de nós.

"O mundo que criamos está confuso, Sofia", eu disse, "Somos quase 8 bilhões de humanos e todos sentimos o peso dessa louca entropia. São poucos os que se mantém lúcidos durante uma viagem psicodélica. Em vários aspectos, evoluímos para o mais do mesmo. Hoje, tudo o que precisamos é de referências já que em outras épocas passamos por algo similar."

Sofia apontou culpados - o homem, a história. Culpou o tempo, que retarda o inevitável. Só não o fez com Deus ("Ele está fora dessa equação", garantiu). "O que fizemos do mundo?", ela me olhou.

"Tantas coisas... algumas interessantes, outras, uma catástrofe. O mundo é o reflexo do que fazemos conosco, Sofia. O homem que luta contra a sua natureza adaptativa é como um vírus, tem essa capacidade de se "cristalizar". Ele endurece, "perde a ternura", se "hermetifica" em sua pequena bolha de ilusões estáveis. E o mundo ao seu redor colapsa. Mudanças que a mão invisível do Tempo alimentou caem como bombas no meio da sua cabeça. Ameaçado em sua bolha e melindrado, ele parte para o ataque usando dos mesmos instrumentos que, outrora, foram empregados para impedir o avanço do devir."

"Sim, mas por que?", perguntou-me Sofia, "Se o passado está bem aqui, ao lado? É um livro aberto...", olhei sugestivamente para ela. "... que nem todos querem ou sabem ler".

"Porque, porque... Porque o homem teme e odeia aquilo que desconhece, porque teme e odeia o que não consegue controlar. Porque erros também são cíclicos. Mudam as gerações, os experimentados cedem lugar aos novatos e estes pretendem, como seus antecessores, fazer o próprio caminho. Ainda que a realidade não seja a mesma, os padrões se assemelham. Porque herdamos a nós mesmos. Mas não tenho interesse nos porquês, Sofia. Não que estorvem, apenas estão aí, todos eles, para quem os quiser ver. Há quase duas décadas minha atenção se volta para o Tempo - não o 'fugit', mas o onipresente. A Terra, seu núcleo, as partículas flutuantes, todo o Cosmo giram. E com eles também nós, em um túnel espiralado que atravessa o "oceano no fim do caminho" de ponto a ponto."

"Estou cansada e nem vi tantas Primaveras... O devir e o inevitável... estamos presos aqui, numa poça de areia movediça", ela apoiou o queixo na mão, os olhos fazendo contornos no chão.

Olhei para ela, olhei para o céu. Uma colcha escura crivada de furos atravessados pela luz.

"A medida do homem é o Entendimento. A boa notícia? Ele chega para todos."

Sofia ergueu os olhos. "E a má?"

"Ele fala a todos, mas nem todos o ouvem".

"E assim, poucos pagarão caro pelo erro fatal de muitos. Não é justo."

Ali perto, tive a impressão de ver uma boca felina cheia de dentes afiados sorrindo no escuro, um sorriso imenso. Um leve comichão passeou em meus lábios de um canto a outro. O gato na caixa revirou-se em seu sono. "Falemos da poesia da justiça e da crueza de sua funcionalidade em outra hora?", ergui-me. Ofereci-lhe a mão. Ela aceitou. As folhas secas estalando aos pés.

"Certo", exalou, "O que vem agora?".

"Que tal xadrez?" Ela riu.

"Você não gosta de jogar xadrez."

"Agora quem falou em jogar?", uma sobrancelha presunçosamente erguida, tocando a testa.

"Então o que?"

"Paciência. Em breve, você também entenderá."