18 de julho de 2013

O eterno retorno do mito


Se não assistiu ao filme "Man of Steel" e não quiser, pelo próprio bem de sua sanidade, saber absolutamente nada a respeito da história e de alguns de seus eventos, não leia o texto abaixo.




Não é de hoje que super-heróis de revistas em quadrinho e produções filmográficas guardam identidade com mitos e símbolos. Talvez, o maior de todos os mitos e símbolos seja o Herói de Mil Faces. Talvez, a face do herói de mil delas mais abordada seja a do Salvador e Redentor, essa que tem em Jesus, o Cristo, o maior de todos os ícones. Ícone esse que serviu, mais uma vez e mais que nunca, de ‘pedra angular’ para a construção do “novo” Superman, de Snyder e Nolan, em ‘Man of Steel’. Ou não é óbvio?

Se visto analogicamente, desde a sua concepção o Homem de Aço – assim como outros da mesma safra, tais como Homem de Ferro, Batman, Homem-Aranha, Thor... em relação a mitos da antiguidade grega, escandinava, suméria... - guarda similitudes com o “herói crístico” - similitudes essas potencializadas e realçadas em ‘Man of Steel’. Trata-se, afinal, do “Super-Homem”, o Zeus do panteão dos heróis ‘mitomaníacos’ da modernidade, a esse patamar elevado quiçá pelo inconsciente coletivo, devido a própria condição: não é realmente de um humano, fadado à fraquezas e vicissitudes de sua mediocridade, que estamos falando, mas de um Ser Superior originário de um mundo superior; uma “criatura perfeita” infiltrada em nosso meio, passando-se por um de nós, revelando-se, com o tempo, estar acima de nós; tornando-se, a um só tempo, a quebra de um paradigma existencial, o marco de um antes e de um depois (ironia fazer um a.C. e um d.C., sendo 'Clark' no lugar de 'Cristo'?), e um modelo vivo de inspiração moral e atitudinal.


“Quando o mundo souber o que você pode fazer, vai mudar tudo. Nossas crenças, nossas idéias, o que significa ser humano, tudo.” (Jonathan (José), para Clark).


Esse é o fardo do Homem de Aço, bem parecido ao de Cristo, se analogicamente equiparado.  Como o ‘herói salvador’ mais conhecido e cultuado do mundo, o Superman tem poderes e habilidades supra-humanas; possui um código moral acima de qualquer outro, pois assim como o Cristo, o vive, está em seu “DNA celestial”, em sua natureza superior fazê-lo... natureza essa suportada e guarnecida pelos pais adotivos, dois bondosos e humildes trabalhadores do campo que, a exemplo de José (Jonathan) e Maria (Martha), tiveram suas vidas mudadas para sempre ao tomarem em seus braços a criança extraordinária deitada em sua “manjedoura espacial” – pois outros não poderiam, outros não estavam “predestinados”, por seus méritos próprios, a cuidar da criança. Nas palavras de Christopher Nolan, produtor do filme, a Entertainment Weekly, “O Homem de Aço é o super-herói definitivo. Ele tem os poderes mais extraordinários, tem os ideais mais extraordinárias para viver. Ele é muito semelhante a Deus em muitos aspectos. " De fato...

... nesse “Super-Homem revisitado” estão esboçados, em cores e texturas ainda mais vivas que outrora, em total e frontal “nudez mítico-temática”, as mais tangíveis semelhanças com o Filho de Deus, o Filho do Homem apontado no Novo Testamento. Tal como o Cristo, originalmente Emmanuel, filho de El (palavra semita utilizada para designar “Deus”), o Superman, Kal-El, filho de El (assim referido), foi concebido e nascido em um mundo muito mais evoluído que o nosso, há anos-luz a frente do nosso tempo; assim como Emmanuel, filho amado, exaltado e exortado pelo `Pai a tornar-se a “luz do novo mundo” e o “guia” da humanidade, Kal-El é enviado à Terra com a promessa e a missão predeterminada pelo pai de “ajudar”, “conduzir” e, a seu tempo, servir de ponte entre a Terra que hoje há e a Terra que um dia será... pois, a exemplo de Cristo-Emmanuel, que simbolicamente representa o “pai” de uma nova raça melhorada (o “Novo Homem”) e de um novo tempo, o Krypton-Kal-El traz dentro de si (literalmente em seu “corpo e sangue”) a linhagem “celestina” de seres superiores (o registro genético de uma civilização inteira de kriptonianos) que “herdarão” o novo mundo, transformando-o na nova Krypton (o novo Éden, a nova Jerusalém), assumindo papel idêntico aos dos “anjos”, “guias” e “mestres”.

Como Jesus (o homem) retratado biblicamente, Clark (o homem) passou seus 33 anos de vida terrena no anonimato, ou no quase anonimato que suas habilidades o permitiam, pois, assim como Jesus, também era levado a operar “milagres” sempre que necessário, embora de forma isolada, quase como um fantasma ou um “anjo da guarda”, que faz a boa ação ou opera o milagre e volta a ocultar-se dos olhos... pois simplesmente “ainda não era chegada a sua hora” (de revelar-se ao mundo).  Tempo esse adiado ao máximo possível pelos pais adotivos  que, a exemplo de José e Maria, tinham reservas (o instinto natural de proteção) quanto ao filho tornar-se “quem estava predestinado a ser”, e o guardaram do mundo que o não compreenderia até o dia em que o filho escolheu sair de casa para fazer o próprio caminho, “vagando sozinho pelo deserto, enfrentando tentações”.

Entre um flash e outro de sua infância e adolescência e de parte da sua fase adulta anterior  ao seu “ministério”, temos uma breve noção da vida do Homem de Aço em moldes idênticos aos da história bíblica de Jesus: pouco se sabendo dos 30 anos de vida que antecederam o início de sua missão salvadora,  apenas o suficientemente necessário para se deduzir que ele, assim como o Cristo, vinha crescendo em “poder e virtude” diante dos pais (que o conheciam), dos homens (que testemunhavam algumas de suas intervenções, a maioria anonimamente) e de Deus (representado pela consciência de Jor-El e o vínculo genético com o passado). Os flashes convergem, então, para um marco: dentro da nave kryptoniana, Kal-El recebe a consciência do pai Jor-El (em holograma), que lhe revela sua natureza e o exorta a iniciar a sua missão terrena, tal como ocorrido com Jesus ao ser batizado nas águas, recebendo a unção do Espírito Santo para, dali em diante, assumir publicamente quem de fato é aos olhos dos homens e iniciar o seu ministério. Também dentro da nave, Clark, o homem, encontra-se com Lois Lane, revelando-se para ela um ‘deus’ ao usar a super força para salva-la de uma morte iminente (‘salvador’ é como Lois passa a chama-lo desde então) – nesse contexto em particular, a nave lembra o aspecto de ‘Câmara Nupcial’, dos postulados herméticos e gnósticos, em que Jesus e Maria Madalena, então Chamas Gêmeas, teriam adentrado para receber sua Iniciação. Interessante notar que o Kal-El de ‘Man of Steel’, assim como o Jesus bíblico, parece manter-se casto - mesmo a aproximação de Lois Lane deu-se de forma platônica.

Exatamente aos 33 anos, Kal-El se oferece em sacrifício ao seu então antagonista, General Zod, a personificação da força destrutiva, ao se entregar de boa vontade a uma possível morte, como Jesus  fez na cruz, ambos na esperança de que, imolando-se, poderiam salvar a Terra (flutuando no ar, sobre os homens que o vêem pela primeira vez em sua “majestade”, tendo o sol as suas costas, o Super-Homem evoca a imagem de Cristo ao ascender ao Céu, após ressurreto). Momentos depois, como Jesus disse a Judas Iscariotes durante a Santa Ceia, Kal-El o fez com os homens que o deveriam entregar a Zod: “Faça o que deve ser feito”. 

A exemplo do Diabo (“irmão de Cristo”, pois esse mesmo Diabo certa vez, há muito tempo, já fora um anjo), Zod (“irmão” de Kal-El) tenta o Filho de Jor-El a formar uma aliança consigo e aqui a metáfora se transporta da Bíblia para as teorias demonólogas, quando Zod,  em nome do ideal de fazer da Terra a nova Krypton, propõe a Kal-El extrair do seu material genético o Codex de milhões de kryptonianos para repovoar a Terra, sem espaço para a coabitação com seres humanos – trazendo à memória uma das sátiras apocalípticas, em que Gabriel ou mesmo Miguel se insurge contra o propósito de Deus de elevar os homens a um nível de importância que não merecem, assim conspirando para a extinção da raça humana -  então considerada um “erro”.

Metaforicamente encenando a descida do Cristo ao “mausoléu dos mortos”, o Filho de Jor-El desce ao intramundo e de lá retorna, mais vivo e  poderoso – tal como na revelação apocalíptica – e determinado a vencer o mal perpetrado por Zod, libertando o  mundo da ameaça da morte (representada pelas máquinas utilizadas no planeta, para alterar sua estrutura, e, no processo, destruir a raça humana). Ao sair-se vencedor, sua vitória sobre a morte é um sinal de esperança para os humanos (“a renovação da aliança de Deus com os homens”, a promessa de Vida).

Em um último ato de sacrifício (não de sua vida e sim de sua ‘pureza’), Kal-El é obrigado a escolher entre a vida dos homens e a do “irmão". Mesmo no fim, quando o silêncio finalmente se abate juntamente com o inimigo, não é a paz dos justos que ouvimos, mas o  grito de frustração de Kal-El; não vemos a imagem de um herói impávido, mas de um homem, que também é um ‘deus’ num mundo de simples homens, prostrado de joelhos. Pois embora o Cordeiro torne-se um Leão, o Leão possui um coração.

Carregando o paradoxo metafórico de ser um “deus vivo” criado “à imagem e a semelhança do homem”, o Superman de Snyder e Nolan encarna, ao mesmo tempo, o conceito mítico e emblemático do Filho de Deus e as “fraquezas” de um semi-deus incomodado por questões existenciais tipicamente humanas (“Quem sou eu?”, “Por que estou aqui?”), por questões derivadas de sua condição ‘suis generis’ (“Qual o sentido da minha existência em um mundo no qual não me encaixo por ser quem eu sou?”) e da educação “auto-confinatória” que recebeu de seus pais adotivos visando à preservação de sua ‘divindade’ (“Qual o sentido de possuir habilidades supra humanas, se não posso usá-las sempre e quando necessário para benefício dos seres?”). 

Modernamente mais obscuro, simbólico e ‘dramaticamente humano’ que seus antecessores, o Superman de ‘Man of Steel’ reforça o eterno conflito entre as forças antagônicas do Bem e do Mal, que aflige a raça humana e que consiste em sua maior ameaça. Ao mesmo tempo em que seu herói evoca a imagem de um ‘deus vivo e perfeito’, operando ‘milagres’ no mundo, promovendo a ‘salvação’ daqueles que adotou como seus e servindo-lhes de inspiração, também traz consigo os estigmas das fraquezas humanas que incorporou ao longo dos anos, desde sua infância: a dúvida de ser quem é; o medo e a insegurança de dar-se a conhecer como é; o sentimento de não pertencimento; a perpétua estranheza e deslocamento em um mundo limitado e limitador; sempre forçado pelo ‘bom senso’ cultivado pelos pais a ocultar a superioridade física, mental e moral sob camadas de psicologia e comportamento mediocramente humanas, em benefício dos homens, frágeis demais em sua fé para conhecer a “verdade” libertatória. Como o fazem os gnósticos diante de Deus, foi apenas na presença do Pai (consciência divina), que o Filho, ao conhecer a verdade, aceitou que a sua luz deveria brilhar no mundo tal como o sol ao despontar no horizonte, bem como ser colocada à prova, ainda a exemplo do sol, que parece sucumbir às trevas no ‘eterno retorno’ ontológico que acompanha o Herói de Mil Faces. 

Ou não. E nada do aqui exposto se aplica, exceto em outra realidade alternativa digna de J.J. Abrams.