- Sabe qual é o seu
problema?
- Não. Me diga:
qual é o meu problema?
- Essa sua atitude
despreocupada. Você não se previne contra o que se pode perfeitamente
evitar.
- Só porque não
saio de casa com meu kit de "prevenção de incidentes"? Guarda-chuva,
protetor solar...
- Não custa ser
prevenido. Pode se evitar muita coisa, você sabe.
- Como da última
vez que você acertou em levar o guarda-chuva, mas não contava com a ventania.
Se soubesse que ficaria na chuva com o cabo do guarda-chuva na mão, teria
lembrado de levar a capa?
- Foi uma
fatalidade.
- A isso me refiro.
Fatalidade e controle. Merdas acontecem, independentemente do controle que,
eventualmente, mas não irrestritamente, tenhamos sobre nossas escolhas.
- Mas não custa se
prevenir. Veja, por exemplo, uma pessoa que sai à noite e toma um atalho escuro
e isolado, para encurtar o trajeto. Ela deveria calcular os ricos, ter a noção
de que por ali o perigo de sofrer uma agressão é maior do que se tomasse o
caminho mais longo, porém menos arriscado. Se ela for assaltada, estuprada ou
morta...
- A culpa será
dela?
- Não foi isso que
eu quis dizer. Chame de "causa e efeito": a não prevenção...
- Provocou a
agressão? Vê lá o que você diz...
- Vejo se você me
deixar dizer. Refiro-me à consequências. No caso, à incidência da consequência
sobre a inconsequência de tomar atalhos escuros e isolados, sabendo que se deve
evita-los.
- Entendo o que são
"riscos calculados", o que implicam e a que se aplicam. Estimar
possibilidades em situações hipoteticamente prováveis ajudam a prevenir
"acidentes de percurso". Mas se aplicam com sucesso aos incidentes,
às fatalidades sobre as quais não se tem controle? Já que estamos falando de
"crime e castigo", partindo do exemplo que você deu... onde fica a
inconsequência da pessoa que opta fazer o percurso seguro e mesmo assim se
torna vítima de um crime? O que ela "provocou" com a sua atitude
consequente?
- Não se trata de
"erro e punição", a vítima não ocasionou o crime. Trata-se apenas de
ver os riscos e assumi-los como possíveis e, dependendo da situação, prováveis.
- Não ocasionou,
mas, de certa forma, contribuiu, não? Ao correr os riscos por desatenção,
imprudência ou negligência, tornou-se omissa com sua segurança. Sua omissão
tornou-a um alvo fácil. Embora eu esteja de acordo com o "calcular
riscos", também não descarto o "merdas acontecem". O que me
lembra a manipulação da idéia...
- Qual delas?
- O argumento
"consequência da inconsequência" é relativo.
- Concordo. Se
aplica a cada caso, segundo sua natureza e singularidades. Achei que estivesse
implícito.
- Para os
esclarecidos, sim. Para a maioria dominante, não. Todo cuidado é pouco. Um
desvio de argumentação, apenas, para o argumento em questão servir de pano de
fundo para o discurso falacioso sobre "quem tem mais culpa, a vítima ou
criminoso?".
- Do tipo: "Mulher
que sai na rua "vestida como vagabunda" está pedindo pra ser
estuprada!"; "Saiu de casa com shortinho alegando calor? Sem
problema: se receber cantada obscena, ouvir piadinha sacana e for apalpada na
rua, não venha reclamar."...?
- Touché! "É bonita? Vá se preparando pros avanços. Mas quem mandou ser bonita? Homens não se contém!"... A isso chamam "fatalidade". Afinal, "foge ao controle", não?
- E
"fatalidades" assim acontecem o tempo todo. "Eu não pude
evitar, foi mais forte que eu. Ela sentava no meu colo... me provocava, seo
delegado..."; "O senhor entende o que diz? A sua filha de 7 anos de
idade senta no seu colo e a isso o senhor chama de "provocação
sexual?"...
- E a
"consequência da inconsequência" de se nascer negro? "Sua cor
está pedindo pra apanhar!". Culpa deles, afinal: deveriam ter
calculado os riscos genéticos antes de nascerem.
- "Deus fez
homem e mulher, não homem e homem, ou mulher e mulher. Não fez homem para ser
mulher, nem mulher para ser homem. Quem vai contra isso é aberração. Está
pedindo para ser execrado e receber a devida punição."
- "Culpa do
homossexual, ora! Por que não se "preveniu" de ser assim?"
- "Agora
aguente a "fatalidade" da sua "desorientação sexual"."
- Certos riscos são
tão fatais quanto preveníveis.
- Ei! Estamos
falando do homem em relação aos da própria espécie. Acha que seria diferente?
- Se o homem for um
risco calculado, quiçá. Mas me inclino à 'fatalité'.
- Sei. "Merdas
acontecem"?
- O tempo todo - homens acontecem.
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