Se não
assistiu ao filme "Man of Steel" e não quiser, pelo próprio bem de sua
sanidade, saber absolutamente nada a respeito da história e de alguns de
seus eventos, não leia o texto abaixo.
Não
é de hoje que super-heróis de revistas em quadrinho e produções filmográficas
guardam identidade com mitos e símbolos. Talvez, o maior de todos os mitos e
símbolos seja o Herói de Mil Faces. Talvez, a face do herói de mil delas mais
abordada seja a do Salvador e Redentor, essa que tem em Jesus, o Cristo, o
maior de todos os ícones. Ícone esse que serviu, mais uma vez e mais que nunca,
de ‘pedra angular’ para a construção do “novo” Superman, de Snyder e Nolan, em
‘Man of Steel’. Ou não é óbvio?
Se
visto analogicamente, desde a sua concepção o Homem de Aço – assim como outros da
mesma safra, tais como Homem de Ferro, Batman, Homem-Aranha, Thor... em relação a
mitos da antiguidade grega, escandinava, suméria... - guarda similitudes com o
“herói crístico” - similitudes essas potencializadas e realçadas em ‘Man of
Steel’. Trata-se, afinal, do “Super-Homem”, o Zeus do panteão dos heróis
‘mitomaníacos’ da modernidade, a esse patamar elevado quiçá pelo inconsciente
coletivo, devido a própria condição: não é realmente de um humano, fadado à
fraquezas e vicissitudes de sua mediocridade, que estamos falando, mas de um
Ser Superior originário de um mundo superior; uma “criatura perfeita”
infiltrada em nosso meio, passando-se por um de nós, revelando-se, com o tempo,
estar acima de nós; tornando-se, a um só tempo, a quebra de um paradigma
existencial, o marco de um antes e de um depois (ironia fazer um a.C. e um
d.C., sendo 'Clark' no lugar de 'Cristo'?), e um modelo vivo de inspiração moral e
atitudinal.
“Quando o mundo souber o que você pode fazer, vai mudar tudo. Nossas crenças, nossas idéias, o que significa ser humano, tudo.” (Jonathan (José), para Clark).
Esse é o fardo do
Homem de Aço, bem parecido ao de Cristo, se analogicamente equiparado. Como o ‘herói salvador’ mais conhecido e
cultuado do mundo, o Superman tem poderes e habilidades supra-humanas; possui
um código moral acima de qualquer outro, pois assim como o Cristo, o vive, está
em seu “DNA celestial”, em sua natureza superior fazê-lo... natureza essa suportada
e guarnecida pelos pais adotivos, dois bondosos e humildes trabalhadores do
campo que, a exemplo de José (Jonathan) e Maria (Martha), tiveram suas vidas
mudadas para sempre ao tomarem em seus braços a criança extraordinária deitada
em sua “manjedoura espacial” – pois outros não poderiam, outros não estavam
“predestinados”, por seus méritos próprios, a cuidar da criança. Nas palavras
de Christopher Nolan, produtor do filme, a Entertainment Weekly, “O Homem de
Aço é o super-herói definitivo. Ele tem os poderes mais extraordinários, tem os
ideais mais extraordinárias para viver. Ele é muito
semelhante a Deus em muitos aspectos. " De fato...
... nesse “Super-Homem revisitado” estão
esboçados, em cores e texturas ainda mais vivas que outrora, em total e frontal
“nudez mítico-temática”, as mais tangíveis semelhanças com o Filho de Deus, o Filho do Homem apontado no Novo Testamento. Tal como o Cristo, originalmente Emmanuel,
filho de El (palavra semita utilizada para designar “Deus”), o Superman,
Kal-El, filho de El (assim referido), foi concebido e nascido em um mundo muito
mais evoluído que o nosso, há anos-luz a frente do nosso tempo; assim como
Emmanuel, filho amado, exaltado e exortado pelo `Pai a tornar-se a “luz do novo
mundo” e o “guia” da humanidade, Kal-El é enviado à Terra com a promessa e a
missão predeterminada pelo pai de “ajudar”, “conduzir” e, a seu tempo, servir
de ponte entre a Terra que hoje há e a Terra que um dia será... pois, a exemplo
de Cristo-Emmanuel, que simbolicamente representa o “pai” de uma nova raça
melhorada (o “Novo Homem”) e de um novo tempo, o Krypton-Kal-El traz dentro de
si (literalmente em seu “corpo e sangue”) a linhagem “celestina” de seres
superiores (o registro genético de uma civilização inteira de kriptonianos) que
“herdarão” o novo mundo, transformando-o na nova Krypton (o novo Éden, a nova
Jerusalém), assumindo papel idêntico aos dos “anjos”, “guias” e “mestres”.
Como Jesus (o homem) retratado biblicamente,
Clark (o homem) passou seus 33 anos de vida terrena no anonimato, ou no quase
anonimato que suas habilidades o permitiam, pois, assim como Jesus, também era
levado a operar “milagres” sempre que necessário, embora de forma isolada,
quase como um fantasma ou um “anjo da guarda”, que faz a boa ação ou opera o
milagre e volta a ocultar-se dos olhos... pois simplesmente “ainda não era
chegada a sua hora” (de revelar-se ao mundo). Tempo esse adiado ao máximo possível pelos
pais adotivos que, a exemplo de José e
Maria, tinham reservas (o instinto natural de proteção) quanto ao filho
tornar-se “quem estava predestinado a ser”, e o guardaram do mundo que o não
compreenderia até o dia em que o filho escolheu sair de casa para fazer o
próprio caminho, “vagando sozinho pelo deserto, enfrentando tentações”.
Entre um flash e
outro de sua infância e adolescência e de parte da sua fase adulta
anterior ao seu “ministério”, temos uma
breve noção da vida do Homem de Aço em moldes idênticos aos da história bíblica
de Jesus: pouco se sabendo dos 30 anos de vida que antecederam o início de sua
missão salvadora, apenas o
suficientemente necessário para se deduzir que ele, assim como o Cristo, vinha
crescendo em “poder e virtude” diante dos pais (que o conheciam), dos homens
(que testemunhavam algumas de suas intervenções, a maioria anonimamente) e de
Deus (representado pela consciência de Jor-El e o vínculo genético com o
passado). Os flashes convergem, então, para um marco: dentro da nave
kryptoniana, Kal-El recebe a consciência do pai Jor-El (em holograma), que lhe
revela sua natureza e o exorta a iniciar a sua missão terrena, tal como
ocorrido com Jesus ao ser batizado nas águas, recebendo a unção do Espírito
Santo para, dali em diante, assumir publicamente quem de fato é aos olhos dos
homens e iniciar o seu ministério. Também dentro da nave, Clark, o homem,
encontra-se com Lois Lane, revelando-se para ela um ‘deus’ ao usar a
super força para salva-la de uma morte iminente (‘salvador’ é como Lois passa a
chama-lo desde então) – nesse contexto em particular, a nave lembra o aspecto
de ‘Câmara Nupcial’, dos postulados herméticos e gnósticos, em que Jesus e
Maria Madalena, então Chamas Gêmeas, teriam adentrado para receber sua
Iniciação. Interessante notar que o Kal-El de ‘Man of Steel’, assim como o
Jesus bíblico, parece manter-se casto - mesmo a aproximação de Lois Lane deu-se
de forma platônica.
Exatamente aos 33
anos, Kal-El se oferece em sacrifício ao seu então antagonista, General Zod, a
personificação da força destrutiva, ao se entregar de boa vontade a uma possível morte, como Jesus fez na cruz, ambos
na esperança de que, imolando-se, poderiam salvar a Terra (flutuando no ar,
sobre os homens que o vêem pela primeira vez em sua “majestade”, tendo o sol as
suas costas, o Super-Homem evoca a imagem de Cristo ao ascender ao Céu, após
ressurreto). Momentos depois, como Jesus disse a Judas Iscariotes durante a
Santa Ceia, Kal-El o fez com os homens que o deveriam entregar a Zod: “Faça o
que deve ser feito”.
A exemplo do Diabo
(“irmão de Cristo”, pois esse mesmo Diabo certa vez, há muito tempo, já fora um
anjo), Zod (“irmão” de Kal-El) tenta o Filho de Jor-El a formar uma aliança
consigo e aqui a metáfora se transporta da Bíblia para as teorias demonólogas,
quando Zod, em nome do ideal de fazer da
Terra a nova Krypton, propõe a Kal-El extrair do seu material genético o Codex
de milhões de kryptonianos para repovoar a Terra, sem espaço para a coabitação
com seres humanos – trazendo à memória uma das sátiras apocalípticas, em que
Gabriel ou mesmo Miguel se insurge contra o propósito de Deus de elevar os
homens a um nível de importância que não merecem, assim conspirando para a
extinção da raça humana - então considerada
um “erro”.
Metaforicamente encenando
a descida do Cristo ao “mausoléu dos mortos”, o Filho de Jor-El desce ao
intramundo e de lá retorna, mais vivo e poderoso – tal como na revelação apocalíptica
– e determinado a vencer o mal perpetrado por Zod, libertando o mundo da ameaça da morte (representada pelas
máquinas utilizadas no planeta, para alterar sua estrutura, e, no processo,
destruir a raça humana). Ao sair-se vencedor, sua vitória sobre a morte é um
sinal de esperança para os humanos (“a renovação da aliança de Deus com os
homens”, a promessa de Vida).
Em um último ato de
sacrifício (não de sua vida e sim de sua ‘pureza’), Kal-El é obrigado a
escolher entre a vida dos homens e a do “irmão". Mesmo no fim, quando o silêncio
finalmente se abate juntamente com o inimigo, não é a paz dos justos que
ouvimos, mas o grito de frustração de
Kal-El; não vemos a imagem de um herói impávido, mas de um homem, que também é
um ‘deus’ num mundo de simples homens, prostrado de joelhos. Pois embora o Cordeiro torne-se um Leão, o Leão possui um coração.
Carregando o paradoxo
metafórico de ser um “deus vivo” criado “à imagem e a semelhança do homem”, o
Superman de Snyder e Nolan encarna, ao mesmo tempo, o conceito mítico e
emblemático do Filho de Deus e as “fraquezas” de um semi-deus incomodado por
questões existenciais tipicamente humanas (“Quem sou eu?”, “Por que estou aqui?”),
por questões derivadas de sua condição ‘suis generis’ (“Qual o sentido da minha
existência em um mundo no qual não me encaixo por ser quem eu sou?”) e da
educação “auto-confinatória” que recebeu de seus pais adotivos visando à preservação
de sua ‘divindade’ (“Qual o sentido de possuir habilidades supra humanas, se
não posso usá-las sempre e quando necessário para benefício dos seres?”).
Modernamente mais obscuro, simbólico e ‘dramaticamente humano’ que seus antecessores, o Superman de ‘Man of Steel’ reforça o eterno conflito entre as forças antagônicas do Bem e do Mal, que aflige a raça humana e que consiste em sua maior ameaça. Ao mesmo tempo em que seu herói evoca a imagem de um ‘deus vivo e perfeito’, operando ‘milagres’ no mundo, promovendo a ‘salvação’ daqueles que adotou como seus e servindo-lhes de inspiração, também traz consigo os estigmas das fraquezas humanas que incorporou ao longo dos anos, desde sua infância: a dúvida de ser quem é; o medo e a insegurança de dar-se a conhecer como é; o sentimento de não pertencimento; a perpétua estranheza e deslocamento em um mundo limitado e limitador; sempre forçado pelo ‘bom senso’ cultivado pelos pais a ocultar a superioridade física, mental e moral sob camadas de psicologia e comportamento mediocramente humanas, em benefício dos homens, frágeis demais em sua fé para conhecer a “verdade” libertatória. Como o fazem os gnósticos diante de Deus, foi apenas na presença do Pai (consciência divina), que o Filho, ao conhecer a verdade, aceitou que a sua luz deveria brilhar no mundo tal como o sol ao despontar no horizonte, bem como ser colocada à prova, ainda a exemplo do sol, que parece sucumbir às trevas no ‘eterno retorno’ ontológico que acompanha o Herói de Mil Faces.
Modernamente mais obscuro, simbólico e ‘dramaticamente humano’ que seus antecessores, o Superman de ‘Man of Steel’ reforça o eterno conflito entre as forças antagônicas do Bem e do Mal, que aflige a raça humana e que consiste em sua maior ameaça. Ao mesmo tempo em que seu herói evoca a imagem de um ‘deus vivo e perfeito’, operando ‘milagres’ no mundo, promovendo a ‘salvação’ daqueles que adotou como seus e servindo-lhes de inspiração, também traz consigo os estigmas das fraquezas humanas que incorporou ao longo dos anos, desde sua infância: a dúvida de ser quem é; o medo e a insegurança de dar-se a conhecer como é; o sentimento de não pertencimento; a perpétua estranheza e deslocamento em um mundo limitado e limitador; sempre forçado pelo ‘bom senso’ cultivado pelos pais a ocultar a superioridade física, mental e moral sob camadas de psicologia e comportamento mediocramente humanas, em benefício dos homens, frágeis demais em sua fé para conhecer a “verdade” libertatória. Como o fazem os gnósticos diante de Deus, foi apenas na presença do Pai (consciência divina), que o Filho, ao conhecer a verdade, aceitou que a sua luz deveria brilhar no mundo tal como o sol ao despontar no horizonte, bem como ser colocada à prova, ainda a exemplo do sol, que parece sucumbir às trevas no ‘eterno retorno’ ontológico que acompanha o Herói de Mil Faces.
Ou não. E nada do aqui exposto se aplica, exceto em outra realidade alternativa digna de J.J. Abrams.
Putamerda, quequeéisso! Nunca li uma analise de abordagem "cristã" de man of steel tao boa quanto essa! e não só "cristã", você fez uma mistura de simbolos dificil mas soube costurar tao bem, mas tao bem que não tem como não entender! E escreve que é uma coisa...! (apesar de, hnm, ser um tanto 'rebuscado'? pros padroes de hoje?, hehehe!) A unica coisa em que voce "pecou" foi nao ter ESCRITO MAIS! Posso copiar e mostrar pros amigos? estavamos discutindo outro dia sobre esse filme (foda foda!) e pintou comparação e questionamento sobre essa abordagem simbolica meio que pendendo para o cristianismo. Como voce analisou tao bem e soube costurar com outros elementos tao diferentes (e não é que eu concordo em numero, genero e grau? O.o) vou usar como 'combustivel', hehehehehe!
ResponderExcluirAH, responde uma coisa? voce é gnostica, Inna? esoterica...? Porque parece dominar assuntos que eu acho que so uma pessoa com conhecimento nessas areas poderia. :}
parabens pelo texto! vai me ajudar!, hehehehe!
Ótima analogia. Não é uma teoria, está mais para uma análise comparativa entre a maior figura icônica da religiosidade ocidental(Jesus) e a maior figura icônica dos quadrinhos (Superman). Mas como o nosso amigo comentou antes, não é só isso e não é apenas sob um ponto de vista (já que você costurou, como disse o nosso amigo, com outros vieses - teorias demonológicas, terminologias gnósticas ("Câmara Nupcial"), sem mencionar o mito do herói de mil faces, que Joseph Campbell tão bem abordou em sua obra, a qual suponho eu, você tenha lido). Curiosamente com tanto imbricamento, eu entendi. E com uma ou no máximo duas intervenções, concordo com seu ponto de vista. O Superman de Snyder/Nolan não só parece que bebeu da figura do Cristo, ele realmente foi inspirado. Claro, guardadas as devidas proporções porque estamos falando de uma personagem "de entretenimento" em quadrinhos, com natureza e características só suas. Porém para mim ficou absolutamente óbvia essa associação mítica. Li inclusive que teriam contratado consultores em 'cristianismo' para ajudar os roteiristas com o perfil 'divino' de Kal-El (não que ele seja divino, não é esse o caso, estamos falando analogicamente de simbologias, como você mesma ressaltou em sua analise). Gostei do que li! É raro hoje em dia encontrar textos tão bem elaborados assim sobre universos considerados "pouco intelectuais". Parabens, saudações.
ResponderExcluirMuito bom texto! Mas vindo da Inna Puchkin é de esperar, hehe! Agora....... cadê a analise de Hannibal que tu disse que ia fazer? Tá devendo, e nao vai se safar, viu? XD
ResponderExcluirObrigado, obrigado e obrigado! Mesmo, mesmo, mesmo. XD
ResponderExcluirRespondendo a pergunta... sim, digamos que eu tenho um pé em ramos e em correntes esotéricos, ocultistas e espiritualistas. Sua visão foi de "raio X". ;]
Pessoas, muito me agrada ver comentários com esse nível ('Anônimo' estava inspirado) e... não, eu não esqueci da análise sobre 'Hannibal' (série), visse harmonygrangerpotter? Eu mesma me cobro, mas acho que vou precisar cobrar com mais firmeza, n'est-ce pas? ;]
Valeu pela visita, valeu pelas palavras e voltem sempre!